Páginas

9 de abr. de 2021

A leitura na margem de erro, Por Lau Siqueira, Escritor

Acervo Lau Siqueira

Recentemente o Instituto Pró-Livro provocou reações hilárias na dita sociedade leitora da Paraíba. João Pessoa foi apontada na última edição da pesquisa Retratos da Leitura no Brasil como a capital brasileira que mais lê. Postei nas redes sociais o link da notícia e a reação foi imediata. O deboche foi grande. O fato foi tratado até mesmo como notícia falsa. Falsa, não. Fake, pois falsa é aquela pessoa que você pensava que conhecia. Todavia, o release se limitava a apresentar os dados da bendita pesquisa. Não me consta que as pessoas que duvidaram sejam negacionistas. Sobretudo porque fazem parte da estatística. Mesmo que não tenham sido alcançadas pelos pesquisadores. Mas não se apressem. Será que a capital da Paraíba está mesmo em primeiro lugar? Depende do ponto de vista. O instituto considera um amplo o conceito de leitura e afirma que 64% da população pessoense é considerada leitora. Por outro lado, Curitiba fica com 63%, Belém 61% e por aí vai. Portanto, para quem acha que a pesquisa é mesmo duvidosa solicito apenas que esqueçam o primeiro lugar. Estamos numa honrosa e generosa margem de erro.

Os índices de leitura no Brasil continuam frágeis. Especialmente na literatura. Como medir essa temperatura? Ora, temos analfabetos funcionais até mesmo nas universidades. Tu achas pouco? João Pessoa ou qualquer das capitais citadas entre as que mais leem estão longe de viver no paraíso do livro e da leitura. Mas não é possível negar que alguns avanços aconteceram. Especialmente nas últimas duas décadas. Ainda que esteja paralisado pela ação obscura do governo federal, temos um Plano Nacional do Livro e Leitura. Ou seja: uma régua e compasso para transformações profundas. Focos de resistência na defesa do livro e da leitura, nunca deixaram de existir mesmo nos rincões mais distantes. Cito como exemplo a pedagoga que coloca uma manta de rede na calçada, em São Bento, no Sertão da Paraíba, convidando os vizinhos para a leitura. ONGs como a Escola Viva Olho do Tempo contam com bibliotecas lindas espalhadas pelas periferias. É real a movimentação da feira de livros na FLIBO – Feira Literária de Boqueirão, cuja foto ilustra o texto. Concluo que em dez anos a FLIBO formou leitores. Vender livros no Cariri paraibano virou bom negócio. Existem movimentos naturais na sociedade. A História da Leitura no mundo é lenta. Apressadas, muitas vezes, são as conclusões acerca de algo tão delicado e complexo quanto esse tal Mundo Livro S/A.


Existem questões que há tempos me interessam. Do ponto de vista do mercado editorial, até os poetas desafiam os Best Sellers. Mas como assim? Poesia vende? Ninguém lembra dos Best Sellers na França de Baudelaire. Mas sua poesia continua cada vez mais viva. A coleção “Melhores Poemas”, da Global Editora, sempre apresenta índices invejáveis de vendas. A mesma pesquisa que apontou João Pessoa como a capital que mais leu no último período analisado, também apontou em 2007 que o Vale do Pajeú é a região onde a poesia é mais popular que livro religioso. Alguma surpresa? Então você não sabe o que é uma Mesa de Glosa. Na Serra do Teixeira já fui abordado por um oficial da Polícia Militar que me olhou firme e começou a recitar sonetos. Na contramão do mercado e de braços dados com a sustentabilidade, em festejos juninos realizados em João Pessoa no período entre 2005 e 2008, os cordelistas chegavam a vender de oitocentos a mil exemplares num único final de semana. Essas informações não estão na pesquisa. Apenas fazem parte de uma vivência que me permite dizer que o mundo gira e isso não depende apenas da nossa vontade.

A pesquisa “Retratos da Leitura no Brasil” apresenta dados que sempre impressionam e geram bons debates. Desde 2007 além dos dados analisados, publica textos relevantes sobre a importância da leitura literária. Entre esses os autores desses textos você vai encontrar Moacir Scliar que já escreveu sobre o valor simbólico da leitura e José Castilho Marques Neto que escreveu sobre a necessidade de uma agenda para as políticas públicas no setor. Certamente eles não emprestariam seus nomes para aventuras inconsequentes. A pesquisa já apontou também a poesia entre os cinco gêneros preferidos dos leitores. Considerando-se entre esses gêneros o romance, os livros didáticos, os livros religiosos e a literatura infantil. Também segundo a pesquisa, seis poetas aparecem entre os 20 autores brasileiros mais lidos no país. Vinícius de Morais é o quinto autor na preferência de leitura dos brasileiros. Isso numa abordagem ampla que mostra Monteiro Lobato (o mais lido), Machado de Assis, Ariano Suassuna, Paulo Coelho, Bispo Edir Macedo, Clarice Lispector, etc. Lembrando que o paraibano Ariano também era poeta. Dizia que sua obra em prosa tinha uma forte vertente poética. Ele estava certo.

Se existe algo que podemos comemorar no Brasil das últimas décadas é exatamente a formação de uma militância focada nas práticas de leitura. Uma força ainda tímida, mas que nos arrasta pela paixão. Podemos citar o exemplo de um catador de papel em São Paulo que montou uma biblioteca com mais de 16 mil títulos, num prédio abandonado. Detalhe: todos os livros foram apanhados em lixos residenciais. Podemos até rir da pesquisa. Mas é preciso observar que os resultados apresentados não escondem as fragilidades. Se queremos de fato uma sociedade leitora, como podemos desqualificar a única pesquisa que temos? Professores e professoras do ensino fundamental, do ensino médio e das universidades empenham-se cotidianamente na sedução para o conhecimento através das práticas de leitura. Quer dizer que isso não vale nada? Certamente esses milagres que são operados cotidianamente ainda são raros, mas são sementes valiosas. Vejo algo muito especial sendo espalhado por gente que reconhece o sabor do vento quando janelas as abertas.

Roland Barthes já dizia que a Literatura contém muitos saberes. Só esta frase já justifica a presença de práticas de leitura literária numa escola. Certa vez ouvi de um professor de matemática que a interpretação dos enunciados era a grande dificuldade de alguns alunos e alunas. Algo que somente será superado com a prática cotidiana da leitura. Nada aqui é inquestionável. Aliás, problemas não faltam. Principalmente na abordagem da leitura literária. Segundo Afrânio Coutinho no Livro Notas de Teoria Literária, “a literatura vem sendo ensinada por professores, na maioria de português, de mentalidade predominantemente filológica. A Literatura é tornada um subsídio da língua, confundindo-se análise gramatical com análise literária, análise sintática com análise estilística.” Ou seja, temos questões inquietantes dentro do escopo da pesquisa que carecem do bom debate. Ninguém vai seduzir um jovem para a leitura literária sem mostrar as transgressões, as rupturas, as trajetórias e seus efeitos. A inquietação que cerca a boa literatura é o que mais encanta. O caráter estruturante das políticas públicas de leitura, seguramente, elevam os níveis de ensino. Afinal, um bom leitor dificilmente será um mau aluno. Mas quem está de fato disposto a fortalecer essa luta?

Não podemos desconhecer que há uma geração de educadores no país inteiro trabalhando até mesmo a esquecida literatura contemporânea em sala de aula. São os representantes daquela minoria imprescindível da qual falava Bertolt Brecht. Em João Pessoa não é diferente. A ação cotidiana de muitos profissionais da educação é uma força que não pode ser negligenciada. Seja no ensino fundamental, no ensino médio ou nas universidades. A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil nos traz apenas um panorama temporal e não um volume consolidado. As deficiências e fragilidades são enormes ainda. No mais, temos ‘um longo passado pela frente’. Muita coisa mudou nas últimas décadas. Lembro de um professor que em 2018 me levou para conhecer sua escola, em Esperança-PB. Uma escola que havia sido ampliada, reformada e estava bem equipada. “Quando estudei aqui, sentávamos no chão porque não tinha cadeira”, me disse. Enfim, as cartas estão na mesa e o jogo já começou faz tempo.

Ainda não há o que comemorar, certamente. Mas desconhecer os avanços é apenas algo lamentável. Quando uma instituição pública ou privada apresenta dados não significa que sejam inquestionáveis. Muito pelo contrário. São apenas as bases do bom e necessário debate. Precisamos reconhecer que as mudanças que chegam da base, são graduais. Porém, são as mais transformadoras. Devemos prestar mais atenção nas informações que explicam os dados que as manchetes midiáticas ruborizadas, escondem. No mais, as elites e as celulites intelectuais provavelmente estão sendo superadas e nem percebem. Mas não é para isso que pesquisas são realizadas? São caminhos que estão postos para um modelo de desenvolvimento humano, econômico e social. Tem gente séria trabalhando de forma permanente para mudar o panorama da leitura no Brasil. Podem rir à vontade. Mas depois pensem um pouco sobre tudo isso. Afinal, bons leitores não me parecem ter vocação negacionista.

Fonte: Crônicas Cariocas, novembro de 2020.

Nenhum comentário: